Minha Cabeça É Um Ônibus

Nasci.

Acendi as luzes.

Iluminei o itinerário, mostrando a direção para onde estava indo.

Abri a porta e deixei entrar algumas ideias que já me esperavam no ponto inicial.

Fechei a porta, engatei a primeira e comecei a seguir o meu caminho.

Em pouco tempo, outra ideia me deu sinal. Parei, abri a porta, ela entrou, se acomodou e eu segui em frente.

A linha da minha vida não é um caminho reto. Tive de tomar cuidado ao virar cada esquina porque dirigir um ônibus não é tão simples assim. Em todas as ruas e avenidas por onde passei havia pontos com ideias. Umas entraram, outras não, e algumas pediram para descer quando perceberam que tinham pego o ônibus errado.

Enquanto as ideias viajavam sentadas, as coisas estavam tranquilas.

Aos poucos, o ônibus foi lotando. Algumas ideias tiveram de viajar em pé. Outras se recusaram a embarcar porque preferiram por esperar o próximo. E eu não sabia que podia pedir para as ideias embarcadas darem um passinho adiante para liberar um pouquinho de espaço.

Umas ideias fingiram dormir para não dar lugar às que tinham o direito de irem sentadas. Outras passaram do ponto dormindo mesmo…

O ônibus ficava cada vez mais lotado, pesado e desconfortável, até que, de tão cheio, eu não pude parar em alguns pontos.

A viagem se tornou difícil. Muito aperto, calor e trânsito. As ideias não conseguiam se mexer. Eram tantas ideias amontoadas que elas não conseguiam conversar. Algumas discutiam. Todas estavam cansadas.

As ideias só começaram a desembarcar em maior número quando tinha passado mais ou menos um terço da linha. Algumas que estavam em pé puderam sentar e a viagem ficou um pouco melhor.

Mesmo com o ônibus menos cheio, tiveram ideias que deram sinal e eu não parei por medo de deixá-las entrar. Pode ser que tenha deixado alguma injustamente. Mas também podia ser alguma ideia que só traria confusão.

Algumas obras, ruas de feira, eventos e protestos me obrigaram a desviar do caminho que havia planejado inicialmente. Faz parte.

Sempre tive cuidado, mas nunca fui lerdo. Nunca me envolvi em nenhum acidente sério; só umas pequenas raladinhas e levei algumas multas.

Um pouco mais pra frente, parece que o caminho ficou bem mais rápido. Algumas ideias reclamavam que eu estava correndo demais. Outras acordavam com as freadas bruscas e se davam contam que tinham passado do ponto.

Tirei um pouco o pé do acelerador. Percebi que não estava tão atrasado quando imaginava.

Andando mais devagar e sem superlotação, minhas ideias puderam apreciar melhor um trecho bonito do caminho onde havia muitos pontos. Muitas ideias desceram, mas entraram outras com muita bagagem.

Segui em frente até chegar a um terminal onde várias linhas se cruzam. Mais da metade das ideias desceram, inclusive uma com quem eu conversava há bastante tempo e gostava muito: o perfeccionismo. Mas ele precisava descer ali e pegar um dos ônibus que seguiam pra outra direção. Quando o perfeccionismo desceu, a ansiedade desceu correndo no mesmo ponto e me senti aliviado.

No terminal, entraram muitas outras ideias bem distintas, porque vinham de direções bem diferentes. Saí do terminal com a lotação de assentos completa. Estavam todas as ideias viajando mais confortavelmente, mesmo as que tinham mais bagagem.

Dali em diante, a viagem ficou bem mais tranquila.

As ideias com bagagem têm uma conversa boa, sabia?

Ainda estou no meio do caminho. Tenho muitos pontos e terminais pela frente. Vou seguindo em meu caminho, tomando todo cuidado, desviando quando for preciso, enfrentando o trânsito que for necessário para não deixar nenhuma ideia para trás, passando correndo em alguma lombada, de vez em quando, só para acordar as que passaram do ponto.

Pretendo chegar ao ponto final com todas as ideias que precisarão estar lá naquele momento. De preferência, que esteja apenas com a lotação de assentos completa. Leve…

E tranquilamente desligarei o itinerário, abrirei as portas para todas descerem e poderei descansar depois desta viagem.

(Adriano Duarte)

“Untilmidade”

Acordei com uma palavra na cabeça: “Untilmidade”.
Escrita exatamente desta forma. Do jeitinho que meu subconsciente mostrou.
A imagem que me veio em seguida foi bastante interessante: Uma pessoa retirando os tijolos de uma parede, um a um, com todo cuidado.
Utilizar uma grua para remover a parede é invasão.
Utilizar uma marreta para colocar apenas uma janela, e contentar com isso, é ilusão.
Utilizar uma escada para observar por cima da parede é prisão.
Somente desconstruindo podemos construir a intimidade, com todo cuidado, tijolo por tijolo.

(Adriano Duarte)

A Cor Sem Nome

Laranja, minha cor preferida, é uma cor sem nome. Não é como o azul, o verde, o marrom, o branco, o preto e tantas outras.
Seus pais, amarelo e vermelho, não a registraram. Por conta disso, ela é chamada pro apelidos: cor-de-laranja, cor-de-abóbora, cor-de-brasa, alaranjado (que lembra o “parece, mas não é” do achocolatado)…
Roxo era violeta, quando não tinha nome.
Rosa é uma cor que tem nome, porque as rosas têm diversas cores. Inclusive, quando pensamos em rosas, a imagem das rosas vermelhas são as primeiras que vêm à mente. “Rosa é uma cor, rosa é uma flor, rosa é um nome de mulher”, como disse Jooge Ben Jor em “Take it easy, my brother Charles”.
Salmão, que é outra cor sem nome, no fundo é um tom de laranja.
O céu azul de outono passa despercebido por muita gente, mesmo sendo lindo. Mas não tem quem não repare na beleza do alaranjado do amanhacer.
Minha cor preferida é secundária, sem nome, chamativa, difícil de combinar.
Cor alegre, quente e surpreendente, pode até continuar sendo indigente, mas é, e continuará sendo, a mais linda para mim!
Minha aura e minha alma brilham e vibram com esta cor.
A minha cor!

(Adriano Duarte)

Carrinho de Rolimã

Quando eu era moleque, uma ladeira de asfalto bem lisinho fez os meus olhos brilharem. Logo me animei a fazer um carrinho de rolimã. Fiz o primeiro, desci algumas vezes, me diverti, mas percebi que se ele poderia ser mais rápido se fosse mais bem feito de pesado. Em pouco tempo fiz outro, bem melhor. Aí sim, pude descer aquela ladeira com a velocidade que eu queria e me diverti muito! Sempre que descia, a emoção era grande e o prazer era enorme. Era pura alegria! Me diverti muito até… me arrebentar.

Perdi o controle do carrinho numa derrapagem e me machuquei feio. Mesmo sem ter quebrado nada, demorou para eu me recuperar.

Quando todos os machucados sararam, não pensei duas vezes. Fui descer aquela ladeira de novo, com o mesmo carrinho de rolimã.

Mesmo sabendo que eu poderia me arrebentar de novo, eu decidi correr este risco, não só pela emoção, prazer e alegria, mas porque eu sabia que seria forte o suficiente para me recuperar.

Eu desci inúmeras vezes e não me arrebentei mais. Posso ter dado sorte, mas com aquela derrapagem, fiquei mais esperto e aprendi a dominar os riscos.

Já pensou em quantas alegrias e prazeres eu deixaria de ter vivido se eu tivesse desistido só porque me arrebentei?

Se você já se arrebentou um dia, tenha coragem de descer a ladeira de novo,se suas ferias estiverem curadas. Se não estiverem, cuide-as com carinho, mas mantenha viva a vontade de sentir o friozinho na barriga e o vento no rosto.

Friozinho na barriga e vento no rosto… Que delícia!

(Adriano Duarte)